quarta-feira, 30 de abril de 2014

Dorival Caymmi completaria cem anos hoje caso estivesse vivo

Um dos melhores tradutores da Bahia






Em "Dom Casmurro", Machado de Assis define sua Capitu como quem tem "olhos de ressaca", alguém capaz de uma sedução tão misteriosa e absorta como a do próprio mar que puxa para si quem o confronta. Essa mesma força de atração se faz presente no cancioneiro do compositor Dorival Caymmi, que completaria exatos 100 anos hoje: através da música do baiano, o público é atraído pela fúria bonita do mar, seus mistérios, desastres, amores e saudades.

Falecido no dia 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, em consequência de um câncer renal, Caymmi abriu para o mundo uma Bahia e um Brasil imunes ao tempo, com crônicas musicais e declarações de amor que falam de pretas do acarajé, pescadores que não voltam para casa, idas a Maracangalha e moças difíceis de conquistar, entre Marinas, Doras e Gabrielas. Como os contemporâneos Ary Barroso e Luiz Gonzaga - e, posteriormente, Tom Jobim -, o artista potencializou a música brasileira como um dos maiores produtos de exportação do País.

Sua trajetória teve como ponto de partida Salvador, na Bahia, local onde nasceu, em 30 de abril de 1914, da união entre um funcionário público e uma dona de casa (ele tocava violão, piano e bandolim; ela cantava entre os afazeres domésticos). O violão chegou às mãos de Dorival perto dos 17 anos, três anos antes de sua inserção nas rádios baianas, onde apresentou o programa "Caymmi e suas canções praieiras", em 1935.

Aos 23, Caymmi embarcava num ita (embarcação que cruzava o País, na primeira metade do século 20) rumo ao Rio de Janeiro, então capital federal do País, onde exerceu por pouco tempo as funções de repórter e desenhista de jornais cariocas. Sem nunca deixar de lado a música, em 1938 ele estreou na Rádio Tupi com canções como "O que é que a baiana tem?", que naquele ano explodia para o mundo na voz, nas frutas e nos gestos de Carmen Miranda, dentro do filme hollywoodiano "Banana da terra".

Suas músicas já sinalizavam as mudanças que ele desencadearia na música brasileira, no papel de um dos fundadores do samba-canção moderno. Em 1954, essa evidência se materializava com o primeiro LP, "Canções praieiras", que abarcava o mar místico da Bahia e as saudades da terra natal. No ano seguinte, "Sambas de Caymmi" trouxe sambas urbanos, românticos - como "Só louco" e "Sábado em Copacabana" - que ajudariam a dar os contornos da bossa nova.
Num total de 17 discos e 70 canções, além de ter criado mais obras-primas do que a maioria dos colegas de profissão, Caymmi fundou uma poética e uma mitologia muito próprias, que desde então vem se embrenhando na música brasileira em suas diversas vertentes, desde a bossa nova ao tropicalismo, passando pelos festivais da canção dos anos 1960, os blocos afro de Salvador e as novas gerações de sambistas.

Para o jornalista e pesquisador musical Rodrigo Faour, Caymmi é essencial por ter sido um dos compositores brasileiros que conseguiram construir uma obra atemporal, com elementos do nosso folclore aliados a outros de vanguarda para a época. "Dorival retrata um Brasil brejeiro, praieiro, boêmio, com muita sutileza e sem vulgaridade. Ele traduziu a Bahia de seu tempo, ou seja, até 1938, pois depois ele saiu de lá e nunca mais voltou. Suas músicas são tão bonitas que se cristalizou o mito daquela Bahia da qual hoje só existem resquícios", defendeu Faour.

CELEBRAÇÕES
Apesar da grandiosidade do compositor, não há muitas celebrações para o seu centenário. A maior parte fica a cargo de seus familiares, como o álbum "Dorival Caymmi: centenário", previsto para agosto, organizado por Dori e com participação de Nana e Danilo. Ainda há os lançamentos dos livros "Dorival Caymmi: o mar e o tempo" (edição ampliada da obra de 2001), da neta Stella Maris, e "Dorival no Mar de Caymmi", voltado para crianças, organizado também por Stella, com texto de Lúcia Fidalgo e ilustrações de Letícia Lima. Dori ainda pretende editar 80 partituras do pai pela Casa da Palavra.

Saiba mais

DINASTIA MUSICAL - Casado com a cantora Stella Maris, com quem viveu por 68 anos, Caymmi teve três filhos, todos artistas: Nana, 72; Dori, 70; e Danilo, 66.

PINTURA - Ele também era um exímio artista plástico e chegou a ilustrar a capa de alguns de seus discos. Como na música, ele tematizava a Bahia, seu povo e seu misticismo.

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